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Abel Barros Baptista
Abel Barros Baptista (Vila Nova de Gaia, 1955) é professor de Teoria Literária e Literatura Brasileira da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-NOVA). Tem publicado diversos livros sobre as literaturas portuguesa e brasileira. Grande estudioso de Camilo Castelo Branco e Machado de Assis, foi diretor-adjunto da revista Colóquio/Letras, editada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Colaborou, como crítico, cronista e articulista, em jornais e revistas de Portugal e do Brasil (Expresso, Público, Folha de S. Paulo). Concebeu e dirigiu, para a Livros Cotovia, a coleção Curso Breve de Literatura Brasileira, em 14 volumes. É autor premiado de vários livros de ensaio literário como O professor e o cemitério (1986), Em Nome do Apelo do Nome (1991) e Autobibliografias (1998). Publicou várias coletâneas de ensaios, como A Infelicidade pela Bibliografia (2001), Coligação de Avulsos (2003), Ensaios Facetos (2004) e De Espécie Complicada (2010). Seus últimos livros, E assim sucessivamente (2015) e Obnóxio (2019), foram publicados pela editora Tinta da China, sendo o último finalista do prêmio Oceanos 2020 na categoria crônicas portuguesas. |
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Duas ou três perguntas ao ensaísta Abel*
Jessica: Poderíamos dizer que existe o escritor Abel, que é um ensaísta e que passeia por outros gêneros (como a crônica e o romance); existe o intelectual que ensina literatura brasileira na universidade portuguesa e que exerce a atividade de crítico literário; e existiria, ainda, um teórico do ensaio. Você poderia falar desses aspectos múltiplos da sua atividade literária? Como isso foi se dando e como surgiu o seu interesse pelo ensaio? Abel: Acho que vem tudo, mais ou menos, de uma disposição que foi se aperfeiçoando. Há uns meses, tive uma surpresa engraçada, porque reencontrei – ou melhor, fui contactado por um amigo antigo que encontrou, no confinamento de abril [de 2020], arrumando a casa – uma pasta cheia de papéis com coisas que eu tinha escrito. Uma das coisas que eu vi foi um recorte de um jornal português chamado República que tinha um texto que foi o primeiro que eu publiquei na vida. Podemos chamá-lo de um ensaio pequeno, mas era um comentário de um outro ensaio que um terceiro amigo nosso tinha escrito na semana anterior; era uma espécie de texto escrito no seguimento do outro (não era uma resposta nem uma crítica). E fiquei bastante surpreendido, porque reparei que aquilo, mais coisa menos coisa, era eu; ou, como uma pessoa me disse: “Já eras tu e não sabias”. Acho que o que faz a diferença são certos propósitos particulares que os livros têm. O caso de Em nome do apelo do nome (1991), que foi publicado no Brasil com o título A formação do nome (2003), é um livro em que eu tinha um ímpeto muito forte para apresentar uma certa visão a respeito de Machado de Assis. É um livro que nasce da minha insatisfação com o que eu tinha lido a respeito de Machado. Comecei a ler Machado muito antes de ter qualquer interesse pela literatura brasileira e muito antes de ter lido qualquer comentador de sua obra. Quando chegou à altura de se fazer um mestrado, o tema se impôs (o Machado e, em particular, o [livro Memórias póstumas de] Brás Cubas), e fiquei muito desapontado com as coisas que li, que não me pareciam tão interessantes como era o livro. Para mim, era uma discrepância gritante! Como um autor tão estimulante do ponto de vista intelectual, e ao mesmo tempo tão divertido, tinha produzido comentadores tão aborrecidos e pessoas tão sérias a falar de sua obra? Independentemente das escolas, ainda hoje é mais ou menos assim. Fiz uma série de trabalhos enquanto era mais novo que eram dominados pela ideia de propor uma visão alternativa de certos autores – no caso Machado de Assis, mas fiz isso também com o Camilo [Castelo Branco] – e, nesse tipo de trabalho, especializei-me numa forma de ensaio que assenta, sobretudo, no pormenor; isto é, um ensaio que repudia as generalizações, os enquadramentos, os panoramas e as observações genéricas que são, no fundo, aquilo que a maior parte das pessoas considera o ensaio. Eram leituras de textos por vezes muito laboriosas e difíceis de seguir; eu próprio, por vezes, quando pego nesses textos, acho complicado, mas era a forma que eu tinha e que fui buscando de ter alguma autonomia de pensamento relativamente a autores que me interessavam. Agora, os autores que me interessavam, por sua vez, interessavam-me na medida em que se entranharam em mim de uma forma muito particular. Portanto, também eles moldaram a minha maneira de escrever. Ainda hoje, de vez em quando, distraio-me a escrever qualquer coisa e digo “isto é Machado de Assis chapado, não vale a pena continuar!”. São coisas que muitas vezes parecem quase pastiche, mas são um entranhamento muito evidente: autores que li muito, com quem convivi muito e, portanto, a mistura entre o meu interesse de propor um pensamento singular a respeito de certos autores e o modo como eles se entranharam na minha prática de escrita talvez seja o aspecto mais interessante da minha experiência como ensaísta. Parece-me que isso é um ponto importante, e acho que raramente acontece, pois o que vejo na maior parte dos trabalhos acadêmicos que se publica sobre literatura, os autores são completamente impermeáveis à disposição intelectual e artística dos autores sobre os quais escrevem. Raramente há contaminação entre o estilo de um e o estilo do outro. Muitas vezes, não é só uma questão de estilo, é um problema de visão de mundo, de disposição intelectual, de percepção dos problemas, de percepção da própria escrita. E isso [a contaminação] governou a minha experiência, inteiramente. Tenho um livro enorme que se chama Autobibliografias (1998; 2003), que é sobre Machado de Assis, mas também sobre o romance como forma, em volta de vários problemas. Fiz um livro grande, com 36 capítulos curtos que se revisitavam e se retomavam, mas apercebi-me, depois dessa experiência, que, na verdade, eu devia procurar escrever ensaios mais curtos. Depois desse livro, nunca mais escrevi nada que fosse pensado inteiramente como uma totalidade, como foi o Em nome do apelo do nome (1990), como foram os dois livros que escrevi sobre o Camilo, como foi também o próprio Autobibliografias. Acho que tem também um aspecto de energia nessa coisa, não é? Até certa altura, temos energia para imaginar a arquitetura de um livro e andar meses a escrever. Pelo menos eu deixei de ter, e começo a gostar de coisas que comecem e acabem no mesmo dia, ou comecem e acabem na mesma semana, quiçá na mesma hora. E isso, de resto, é o que predomina neste último livro que publiquei, o Obnóxio (2019), em que a maior parte dos textos são escritos ao que corresponde, na primeira versão, a 20-25 minutos de trabalho, porque é uma atividade (a escrita) demasiado intensa para mim a essa altura. O que essa passagem para a escrita de textos mais curtos te proporcionou no sentido do pensamento? Essa passagem para um texto mais curto, para abandonar a ideia de livro como ideia a governar, deu-me alguma liberdade para, por um lado, continuar a escrever ensaios de crítica literária, como era o meu interesse – que estão fundamente recolhidos no livro Coligação de avulsos (2003) –, depois, também, a possibilidade de fazer um tipo de ensaio que chamei de “ensaios facetos” por associação e apropriação de uma expressão que o Camilo fala de um certo tipo de romance – os romances facetos –, que eram ensaios também relativamente curtos, mas um pouco mais extensos que uma crônica de jornal, em que a perspectiva era fundamentalmente humorística. Fiz dois livros com textos desse gênero; uns, às vezes são críticos, outros, são polêmicos, mas o principal é serem textos governados por uma disposição humorística mesmo quando tratam de assuntos mais sérios ou ponderados. E isso, depois, conduziu-me a esses dois últimos volumes que publiquei E assim sucessivamente... (2015) e Obnóxio (2019), que resultam da experiência de escrita numa revista – primeiro mensal e depois trimestral – de textos bastante curtos, com até 4.000 caracteres, cada. Mais ou menos desde 2008, tenho vindo a escrever esse gênero de textos, que são aqueles que, hoje em dia, me satisfazem mais; que me dão mais trabalho e que escrevo com mais facilidade. Porque são aqueles em que a ideia de forma, para mim, é mais evidente, pelo fato de serem curtos. Porque eu consigo abarcar, numa campanha de trabalho, o princípio e o fim; isto é, estou a escrever o princípio do texto e já sei como ele vai acabar, ou já o acabei e estou a revê-lo. Ao passo que um livro longo são meses de trabalho e muitas vezes a forma está indefinida. O caso do Autobibliografias (2003) foi assim. Demorei cerca de um ano a escrevê-lo e só muito perto do fim tive uma noção da forma que o livro poderia ter, e como poderia organizá-lo de maneira que fosse minimamente perceptível para quem o pegasse. Meu interesse principal pelo ensaio começou, curiosamente, a surgir precisamente quando comecei a dedicar-me aos textos curtos. Tenho pensado muito nisso: se a ideia da extensão não é indispensável na questão do ensaio, da mesma maneira que, no conto, fala-se muito que é breve. Muitas pessoas acham que o tamanho não é qualidade, mas é óbvio que um conto muito grande não é um conto. E a extensão tem importância grande na definição do tipo de narrativa que é, não? O livro Em nome do apelo do nome ganhou o prêmio PEN de ensaio em Portugal, e vemos ali um ensaio extenso com características muito diferentes de um ensaio crítico de 4.000 caracteres. Contudo, em ambos os casos, há a crítica literária. O seu interesse pelo ensaio está associado a uma certa concepção de crítica literária que foi, também, se modificando ao longo dos anos? Talvez. Mas, inicialmente, nem tanto. Como eu tinha uma visão da crítica mais como essa que está no Em nome do apelo do nome e no Autobibliografias, que é uma crítica muito próxima da letra do texto, naquela linha da close reading americana, sempre achei que não estava bem dentro do que se esperava de um ensaio – e, na verdade, era um engano. Eu tinha uma ideia que muitas pessoas têm ainda hoje sobre o ensaio, de que é um texto mais fluido, mais impreciso, onde a pessoa se exprime, apresenta uma hipótese, apresenta uma tentativa de acordo com um dos sentidos do próprio termo francês essai. Portanto, pensava que àqueles meus primeiros textos podíamos chamá-los ensaios apenas porque não eram nem poesia, nem teatro, nem ficção – e, aliás, esse prêmio de ensaio que mencionou era ensaio por isso. Hoje, já acho que esse livro sobre o Machado de Assis é manifestamente um ensaio, pois tem uma estrutura que não é usual. Não é um livro organizado para defender uma tese. Tem dois momentos diferentes que se chamam episódios. O primeiro é uma leitura do Instinto de nacionalidade (1873) e o segundo é uma leitura do Memórias póstumas de Brás Cubas. Esse ensaio está governado por qualquer coisa de muito definitivo, que é um desejo, um projeto meu, à época, de ser um crítico machadiano, alguém que escreve sobre Machado de Assis. Nesse sentido, meu primeiro livro é um texto bastante importante, porque não tem propriamente uma tese que possa ser sintetizada numa formulação rápida, mas tem uma estratégia de leitura e de argumentação que consiste fundamentalmente em dizer que não é preciso conhecer o Brasil nem ser brasileiro para ter uma perspectiva crítica inovadora sobre Machado de Assis, e que o próprio Machado tinha o sentido dessa necessidade, embora reconhecesse que, naquela época, a nacionalidade era mais ou menos inevitável. Creio que isso corresponde à ideia do ensaio, porque não há uma submissão suficientemente forte à obra do Machado de Assis; há o cumprimento de um projeto. No fundo, um ensaísta é alguém que diz “eu quero escrever sobre este senhor”, e a primeira condição para escrever sobre um escritor é reivindicar a legitimidade da escrita. A segunda parte é a exploração de possibilidades que não tinham ainda sido exploradas a respeito de sua obra mais conhecida, de certa maneira, da obra fundadora de sua glória. Isso corresponde, portanto, basicamente àquilo que é o ensaio. Hoje julgo que sim, mas à altura em que escrevi aquilo, achei que não. Achei que era um estudo... Eu tinha uma visão, não diria fundamentalista, mas sim uma visão errada do ensaio: uma ideia de que o ensaio era uma expressão subjetiva, fluida, por vezes quase poética. Na altura pareceu-me que este primeiro livro sobre Machado de Assis foi escrito num sentido de precisão que na altura eu reputava como incompatível com a ideia do ensaio. Isto é, eu queria mostrar, recorrendo ao próprio texto, e argumentando muito perto do texto e de seu próprio movimento, que o que se dizia deles (da obra e do autor) estava errado. Fundamentalmente era isto. Portanto, esse sentido da precisão pareceu-me muito mais próximo de um trabalho acadêmico tradicional do que de um ensaio. Hoje, estou convencido do contrário. É o tipo de ensaísmo que escreve sobre textos, mas escreve sobre textos procurando uma verdade, melhor dizendo, procurando uma forma definitiva que só pode ser aquela, e que não é nem uma fantasia nem uma hipótese, nem uma expressão subjetiva. É qualquer coisa que se impõe quase como um imperativo moral. Você pode falar um pouco mais dessa ideia do ensaio crítico como exercício de precisão? A ideia de precisão aí é no sentido da leitura ao pé da letra, digamos assim. Embora a expressão ao pé da letra seja muito equívoca. Mas a ideia é não fazer nenhuma afirmação que não seja comprovada com os textos. E a comprovação com os textos implica um trabalho de elaboração intelectual que é escrito. Temos que ser capazes de escrever sobre uma frase. Por exemplo, nesse caso, o que se deve exigir de um escritor é um certo sentimento íntimo. Portanto, é este sentimento, este sentido de precisão que consiste em elaborar um argumento a partir das particularidades do texto, mas, que seja um argumento: uma forma definitiva de qualquer coisa que é crucial naquele momento para a pessoa que está a escrever e não apenas para o esclarecimento do autor. Muitas vezes escrevemos sobre um autor e o que encontramos ali é crucial para nós e não se traduz necessariamente em mais conhecimento a respeito dele, não é? O ensaio é um gênero teórico? Nesse sentido, é um gênero teórico, mas um gênero teórico singular, individual, porque a subordinação ao conhecimento depende ou está associada à subordinação ao próprio autor, à própria autoria. Aí o autor tem a liberdade para escrever da forma que bem quiser. Portanto, o que nós temos que estar preparados para aceitar é uma ideia de precisão e, sobretudo, mantendo-nos agora nesse contexto do ensaio dentro da universidade, manter uma obediência a uma ideia de precisão que não se confunda à obediência a um conjunto de preceitos e de regras que estão tipificados – e que toda gente pensa que não tem alternativa. Sempre tem alternativa. Muitas vezes, a inovação, o alargamento do conhecimento, a expansão dos nossos horizontes depende de alguém que encontra a alternativa. No caso do ensaio, essa alternativa é gerada pelo próprio processo da escrita, que expande as possibilidades à frente disso. Por exemplo, a livre associação é um dos meios mais interessantes de se escrever ensaios. Uma coisa associa-se à outra. Pessoas mais eruditas encontram uma página e associam a outra e a outra. O problema do ensaio é principalmente o problema da imaginação. Podemos escolher duas palavras: precisão e imaginação. Como ser preciso e, ao mesmo tempo, deixar a imaginação fluir. Esse é o segredo. *Trecho da entrevista concedida por Abel Barros Baptista à Jessica Di Chiara em janeiro de 2021 e que será publicada no livro Formas do ensaio (NUMA Ed., no prelo), sob o título “O ensaio e a universidade”. |
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