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José dos Remédios
Nasceu em 1 de Agosto de 1987, no Chamanculo, Cidade de Maputo. É licenciado em Literatura Moçambicana pela Universidade Eduardo Mondlane, docente, ensaísta e jornalista.Em 2014, digitalizou a obra Nós matamos o Cão-Tinhoso, de Luís Bernardo Honwana, lançada pela Alcance Editores na celebração dos 50 anos da primeira edição do livro. Possui publicações na imprensa moçambicana, angolana, brasileira e eslovaca. Tem atuado como membro de júri em concursos literários, colaborado como consultor de feiras de livro e na edição literária. Escreveu guiões de vídeos em homenagem a Marcelino dos Santos, Joaquim Chissano, Ungulani ba ka Khosa, Dom Dinis Sengulane, Mia Couto e Paulina Chiziane. Foi guionista técnico de som e fotógrafo do documentário Maputo, a doropa. É autor de O horizonte e a escrita (2020), um ensaio sobre oito romances de Adelino Timóteo, e organizou o livro de ensaios José Craveirinha: a voz do nosso tempo (2022). |
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Em diálogo com José dos Remédios
SEE: Para começar esta entrevista, parece-nos importante explicitar que partimos de um plano de conhecimento bastante insuficiente em relação ao panorama do ensaísmo moçambicano, em particular, e também, em geral, do ensaísmo produzido nos países africanos de língua oficial portuguesa. Apesar de termos um idioma em comum, parece-nos urgente o estabelecimento de políticas editorais de incentivo à publicação e circulação entre os continentes e os países que se expressam, não só, mas também, em língua portuguesa. Sem deixar de levar em consideração a diferente circulação e convívio da produção intelectual e literária moçambicana nos circuitos editoriais e académicos brasileiro e português, como vê este cenário? José dos Remédios: As várias ocorrências referidas nesta vasta pergunta, na verdade, contribuíram para que, há três anos, eu decidisse escrever uma dissertação de mestrado sobre dois autores africanos importantíssimos: Aldino Muianga e Luandino Vieira. Tendo-me apercebido dessa espécie de ausência de crítica literária em livro, em Moçambique e nos PALOP em geral, propus-me, depois de ter reparado nas semelhanças existentes entre aqueles dois escritores, pensar a arte literária através de um exercício crítico. Sei que não é fácil e, ultimamente, não é, necessariamente, um exercício que interessa a muita gente e a muitas editoras. A crítica, em termos comerciais, não vende como romance. Ainda assim, obviamente, é imprescindível porque nos permite leituras que, de outro modo, seriam impossíveis. Além disso, num contexto africano em que a mobilidade é um “bicho de mil cabeças”, é mais fácil conhecer Portugal e Brasil do que Cabo Verde, a crítica pode-nos permitir lermo-nos uns aos outros com critério e pontualidade. Tal como a poesia e a prosa, com efeito, a crítica ou os ensaios têm esta possibilidade de nos fazer conhecer o desconhecido e, desse modo, pode, claramente, ajudar as editoras a tomarem sábias decisões no momento de investir em autores. Portanto, neste momento, infelizmente, não estamos a tirar o maior proveito deste património intercontinental que é a língua portuguesa. Não estamos a conseguir tornar essa pátria de Pessoa um lugar ideal e intangível onde possamos morar, sonhar e partilhar as nossas culturas através da arte literária. Também, por isso, tenho um projecto de produção de uma pesquisa sobre como a CPLP se lê. É algo ousado e, entendo eu, necessário para mantermos estes laços que no passado já foram mais acentuados. Mas quem apoia iniciativas dessa natureza? ~ Na sua obra O horizonte e a escrita, centra-se na produção do escritor moçambicano Adelino Timóteo, procurando tornar o ensaio mais atual, enquanto reflexão sobre a contemporaneidade moçambicana, e afirmando a carência de estudos sobre a produção literária moçambicana dos últimos anos. Na sua produção ensaística, toma o ensaio não apenas como um modo de expressão sobre a produção literária em geral, mas como uma forma de resgate e de evidenciação de novas vozes literárias? Nesse sentido, o ensaio é tomado por si como um meio privilegiado de intervenção social? JdR: Sem dúvidas. A minha produção ensaística é intervenção, acção e reacção. Aliás, no último curso de literaturas em língua portuguesa realizado pelo Camões – Centro Cultural Português em Maputo, no ano passado, numa mesa com Francisco Noa e António Cabrita, defendi essa tese, a de que o ensaio, no caso da crítica literária, é a arte de intervir. Quer isto dizer que não escrevo pela componente estética apenas. Inclusive, importa-me o que esse efeito estético, muitas vezes inefável, causa ou pode causar no leitor. Penso na arte como um acto de fé que se mescla com as vivências, emoções, sentimentos, sensibilidades e perspectivas. Aí há lugar para aquela ideia de catarse aristotélica ou para essa ideia de regresso à realidade sem nunca termos saído do plano concreto em que nos situamos. Assim sendo, quando li Adelino Timóteo, captei, na sua narrativa, um conjunto de histórias que mexem com o passado e o presente de Moçambique. Talvez por ter sido jornalista, Adelino Timóteo é um autor que, no exercício da ficção, ao contrário da sua poesia, faz da escrita uma forma de pensar o seu país, as suas gentes e as suas realidades. Logo, estudá-lo, para mim, tornou-se algo obrigatório e inadiável. Além disso, a minha escolha da obra de Adelino Timóteo prendeu-se, sim, a essa necessidade de estudar novas vozes literárias de Moçambique. É verdade que ele não é tão novo quanto a palavra “novo” pode sugerir, mas pertence a uma geração, digamos assim, intermédia, se pensarmos que os autores mais velhos da actualidade literária de Moçambique são da década 50: Aldino Muianga, Luís Carlos Patraquim, Mia Couto, Paulina Chiziane, João Paulo Borges Coelho ou Ungulani Ba Ka Khosa. A mim não interessou estrear-me em livro de ensaio com esses autores que já foram criticados muitas vezes. Pelo contrário, achei que a nossa literatura (em língua portuguesa) ficaria mais rica se desse atenção a um exemplo de autor comprometido com a arte de escrever. Mas isso não quer dizer que não vou estudar os clássicos. Pelo contrário, no ano passado organizei um livro de ensaio sobre a escrita de José Craveirinha e, agora, estou a trabalhar num projecto de livro em que também analiso os autores consagrados que referi. Resumindo, o que mais me interessa é chamar atenção para as novas vozes (isso é o que faço sobretudo na imprensa), mas, claro está, sem excluir o que sempre merece releituras nos livros dos nossos autores mais reconhecidos. ~ Sendo jornalista, cofundador da editora Kuvaninga Cartão d’Arte, roteirista, editor, entre outras atividades, qual é o papel que atribui ao ensaio face a outros géneros em que se expressa nas suas múltiplas atividades? De que modo é que a sua função de jornalista se mescla com a de ensaísta? Podemos afirmar que os seus ensaios expressam a realidade moçambicana, estabelecendo articulações com as identidades e culturas que a habitam? JdR: No meu caso, o jornalismo é uma consequência do ensaio. Quem estuda as literaturas africanas de língua portuguesa sabe que, em termos históricos, surgem muito ancoradas ao jornalismo. A imprensa é o lugar da promoção da literatura e é bom que assim continue, embora hoje as coisas tendem a mudar. Então, quando me encontrava no terceiro ano de universidade, no curso de Literatura Moçambicana, comecei a publicar crítica literária num jornal de maior circulação em Moçambique, o Notícias. Um director de um outro jornal, O País, leu-me e gostou. Assim, cortando etapas, convidou-me a fazer parte da sua Redacção de jornalistas. Cá estou há 9 anos e há 11 anos que me encontro quase viciado em escrever sobre os nossos livros. Mas escrever só sobre Moçambique começa a soar-me a pouco. Temos de quebrar esta coisa das fronteiras e ver o que se encontra do outro lado do muro. É difícil porque geralmente falta material. Actualmente, os moçambicanos não editam os angolanos e os angolanos não querem saber dos cabo-verdianos e por aí adiante. Quem nós, cidadãos da CPLP, lemos, afinal? Bem, não quero ser injusto. O Brasil é o país que mais analisa os autores africanos de língua portuguesa. Nós nem sequer conseguimos acompanhar o passo, importando, pelo menos, esses estudos. Mas teremos, noutros países, o mesmo nível de interesse em estudar o que vem de fora, desses outros países de língua portuguesa? Não me parece. A questão é: porquê? A resposta a esta pergunta vale muitas linhas. Entretanto, uma coisa é certa. Parece que cada um dos países de língua portuguesa, ao nível literário, encontra-se numa jangada de pedra à deriva. Cada um segue a sua direcção e isso é péssimo porque deixamos de ser um bloco coeso, uma comunidade. Respondendo a outras perguntas, como jornalista e ensaísta, a minha tarefa é sempre dar a conhecer, dizer o que serve e o que não deveria ter sido publicado. Isso, claro está, às vezes torna-me mal compreendido porque nem todos os autores sabem lidar com a crítica. Às vezes perdemos potenciais amigos. Noutras vezes desentendemo-nos com pessoas que antes eram simpáticas connosco. Mas é a vida. Não se pode agradar a gregos e troianos ao mesmo tempo e a crítica literária também tem o seu preço, no meu caso, pois eu tanto escrevo numa perspectiva académica como numa abordagem mais livre, feita a pensar nos leitores dos jornais. Desse ponto de vista, espero não estar a ser presunçoso, penso que quem me lê, sim, encontra nos meus textos o que se pode considerar a arte literária produzida em Moçambique e, por consequência, o que Moçambique tem sido nos seus diferentes momentos de História. ~ Seria correto afirmar que a sua produção ensaística incide simultaneamente sobre autores consagrados e uma nova geração de escritores moçambicanos emergentes, que através de editoras recém-criadas podem dar a conhecer as suas obras? De que modo é que a sua atividade como editor e colaborador com várias editoras (não apenas moçambicanas) influi na sua produção como ensaísta? Como gere a sua escrita enquanto elemento de preservar a “memória" e, simultaneamente, contribuir para a “compreensão do mundo contemporâneo”? JdR: É realmente isso. Os autores em ascensão interessam-me mais do que os consagrados, mas tento estar atento a todos. Claro, o plano é meio inclinado. Ainda assim, escrevo sobre todos e o meu próximo livro será esse encontro de gerações desse ponto de vista. Penso que os mais novos precisam de maior atenção. Até porque arrisco a dizer que nunca antes tivemos tantos autores jovens bons na nossa literatura. Tento acompanhar esse ritmo, quer como jornalista, ensaísta ou como editor, quando colaboro com algumas editoras. O meu compromisso é sempre o mesmo, ajudar a dar sentido a cada palavra sonhada ou imaginada por via da escrita. Quanto à memória, bem, o título da minha dissertação é Aldino Muianga e Luandino Vieira: do espaço à memória. Nesse trabalho, procuro explicar como a representação do espaço, em oito livros dos autores, quatro de cada, contribui na configuração da memória colectiva dos seus países. Isso quer dizer que, realmente, me interesso pela preservação da memória, porque temos permanentemente de nos lembrar de onde viemos. As pessoas, hoje, preocupam-se mais com o que têm ou com o que poderão ter, e não com o que são. Isso pode ficar para o caixote de lixo que não faz diferença à maioria. Infelizmente! Talvez, por isso, há um Zé atrevido que, com estas coisas de ensaio, pensa poder contribuir para tornar as circunstâncias das sociedades mais perceptíveis com recurso à memória, afinal o passado continua a trazer-nos mensagens importantes para este desvario séc. XXI, como diria Virgílio de Lemos. ~ Especificamente sobre a escrita, destaca a intenção de criação de um debate com o leitor, ao mesmo tempo que toma o escrito como um elemento de perceção social. De que modo é que o ensaio é, para si, o género privilegiado para cumprir esses objetivos? Nesse sentido, o que valoriza mais nos seus ensaios, a mensagem ou a forma? Na expressão do universo moçambicano, o ensaio assume caraterísticas próprias? Há, nesse sentido, algo que o distinga como género particular de pensamento e de escrita? JdR: O ensaio é uma forma de partilhar perspectivas sobre os objectos. Os autores desfrutam, parafraseando Arundathi Roy, ao colocarem-se como deuses das pequenas coisas. Em algum momento das suas vidas, são felizes porque têm esse poder demiúrgico sobre a vida, sobre a humanidade sempre a esvair-se. Então, penso no ensaio como um momento de pausa, uma equação probabilística sobre a essência das coisas. Com o ensaio analisamos e interpretamos, consentimos e respondemos às questões que nos movem enquanto sujeitos colectivos. É uma forma de pensar o Homem, de lidar com o jogo dos signos porque a referencialidade importa. Em termos do que mais valorizo, cada texto é um universo por descobrir. Não existem, no meu caso, receitas fixas para todo e qualquer tipo de análise. Mas, colocada a questão nesses termos, diria que a mensagem e a forma são, afinal, essas duas faces da mesma moeda. Complementares. Pode ser por isso que não arrisco a dizer que aqui o ensaio tem características definitivamente próprias. Primeiro, o que é próprio neste mundo em que cada um de nós vai buscar aonde quiser o que lhe interessa? Segundo, em Moçambique, como em toda parte, os críticos são produtos de escolas diferentes. E ainda bem que é assim, porque, como uma vez disse o presidente cabo-verdiano (antes de ser presidente), José Maria Neves, a uniformidade é burra! ~ Na sua conceção, o ensaio tem lugar no cenário cultural moçambicano? Se sim, que lugar é esse? JdR: O ensaio é a ponte. E repara que em Moçambique e nos vários países africanos as pontes são essenciais porque nos permitem chegar rapidamente e em segurança lá onde existe o que nos move. As pontes condicionam vidas e ampliam esperanças. As pontes mantêm ligados os que produzem e os que consomem. Por isso mesmo, quando as cheias chegam e quebram os pilares dessas infra-estruturas, ficamos lamentavelmente mais pobres. Como definir o lugar que constitui um evento assim? Acho que respondi a essa pergunta. ~ Para terminar, poderia falar do panorama ensaístico moçambicano de modo mais pessoal. Quais os seus gostos e predileções? Que nomes nos indicaria? JdR: Huff, esta é a pergunta mais abrangente que me é feita. Receio não reunir essa disponibilidade de tempo para a responder numa entrevista. Mas pronto. Deixo ficar umas notas apenas. Tal como ao nível da literatura, estamos num bom momento em termos de produção artística. Em todas as áreas. Digo isso porque, como jornalista artístico (e não cultural, que é mais geral), escrevo matérias relacionadas com todas as áreas. Vejo movimentos inspiradores, jovens a evitar o previsível, a subverterem, a criar novas linguagens e a acreditarem que podem chegar ao infinito das suas possibilidades. Nomes? Tantos. Por exemplo, Tiago Correia-Paulo, Pedro da Silva Pinto, Radjha Ali, Isabel Novella, Tégui, Assa Matusse, Albino Mbie (música), Sufaida Moiane, Rita Couto, Horácio Guiamba, Venâncio Calisto, Bruno Huca (teatro), Álvaro Taruma, M. P. Bonde, Lucílio Manjate, Lica Sebastião, Sónia Sultuane, Virgília Ferrão (literatura), Luís Santos, Nália Agostinho, Suzy Bila, Bena Filipe (artes plásticas), Jared Nota, Ivo Mabjaia, Yara Costa Pereira (cinema) e etc. 19 de Abril de 2023* *Entrevista realizada por Ana Catarina Monteiro, Jessica Di Chiara e Rita Basílio. |
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