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Pedro Eiras
é Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto, Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa e Membro da Rede Internacional de Pesquisa LyraCompoetics. Desde 2005, publicou diversos livros de ensaios sobre literatura portuguesa dos séculos XX e XXI, estudos interartísticos e questões de ética. Entre os mais recentes: Constelações 3 Ensaios Comparatistas (2022), [...] – Ensaio sobre os mestres (2017), Constelações 2 – Estudos Comparatistas (2016), Platão no Rolls-Royce – Ensaio sobre literatura e técnica (2015), e Os Ícones de Andrei – Quatro Diálogos com Tarkovsky (2012). Presentemente, desenvolve pesquisas sobre a representação e o imaginário do fim do mundo. É também autor de obras de ficção (Bach, A Cura, Cartas Reencontradas de Fernando Pessoa), teatro (Um Forte Cheiro a Maçã, Uma Carta a Cassandra, Um Punhado de Terra) e poesia (Inferno). |
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Algumas perguntas ao ensaísta Pedro Eiras*
SEE: Em alguém que escreve tanto (tem vários livros publicados de poesia, de ficção, de teatro, além dos estudos críticos e ensaísticos), o ensaio ocupa algum lugar particular no seu gesto de pensar-criar, ou é apenas um entre outros géneros? Pedro: Apetece-me responder assim: o ensaio não tem um lugar, o ensaio não é um lugar, o ensaio é um movimento, é aquilo que desloca todos os lugares (e não há ensaio se não houver deslocação, interrogação dos mapas, das cartografias; e mesmo se as cartografias estão condenadas a regressar, a reconstruir-se a partir das cinzas, das cicatrizes). Mas há também outra resposta: os meus livros de poesia, ficção, teatro (e outros géneros e formas, mais avessos a uma classificação) incluem esse movimento do ensaio. Uma alegoria, uma personagem, uma dobra da linguagem são, para mim, modos de interrogar os conceitos tal como eu os conhecia previamente. Escrevo esses textos para me colocar problemas, para testar as ideias dentro de laboratórios inteiramente feitos de palavras. Às vezes, de forma até muito explícita: a minha peça de teatro Uma Carta a Cassandra é uma aula de hermenêutica, o meu romance A Cura é uma análise satírica da psicanálise… Mas gosto muito desta vossa expressão: «gesto de pensar-criar». Sim, espero que a minha escrita seja isso – um gesto em movimento, mais do que um objecto terminado; uma dúvida, mais do que um tratado definitivo sobre seja o que for. Precisamente – o ensaio não é um género, é um gesto. E «pensar-criar» agrada-me: um pensar através da criação, um pensar impuro, que precisa de arriscar uma forma; um pensar que tem consciência da sua aventura, que pode até reequacionar (quantas vezes!) as suas operações, desafiando-se a si próprio. Porque nós pensamos através de palavras (e não só; mas decerto também através de palavras), e essas palavras implicam materialidade, forma, resistência. Nesse momento, das duas uma: podemos disfarçar a forma, fingindo que há um pensar «puro» (muitas aspas, muitíssimas, em volta deste «puro»…); ou podemos reivindicar a forma, essa dobra da linguagem. Já se vê que prefiro a descida ao atrito da terra... E ainda há isto: não só um poema ou um capítulo de romance incluem o gesto ensaístico do pensamento, mas o próprio ensaio me aparece como uma cena teatral, onde conceitos entram em conflito (ou inesperadas concórdias). No ensaio, as próprias frases não são simples instrumentos ao serviço de não-sei-que verdade ou conhecimento prévio – mas uma tensão. Uma comunicação académica, uma aula não são «transmissão do conhecimento científico» (sinto a maior relutância perante esta fórmula), mas um acontecimento de procura e vertigem e perda e descoberta e recomeço. No livro de ensaios Esquecer Fausto você partiu de uma problemática, a da fragmentação do sujeito, para a investigar em quatro escritores portugueses. Os livros seguintes tendem a concentrar-se na obra de um autor (ou num movimento, como é o caso de Um Certo Pudor Tardio), mas depois retoma a investigação em diferentes autores – é o caso de Constelações, por exemplo. Tem um modelo preferencial para os seus livros de ensaios? Acho que não. A Moral do Vento é «apenas» sobre Gonçalo M. Tavares; Tentações, sobre Raul Brandão e o Marquês de Sade (e sobre os brandonianos e os sadianos, claro…); Esquecer Fausto, sobre Raul Brandão, Fernando Pessoa/Bernardo Soares, Herberto Helder, Maria Gabriela Llansol; Os Ícones de Andrei, sobre Tarkovsky em diálogo com Luís Quintais, Maria Gabriela Llansol, e outra vez Raul Brandão; mas os três volumes de Constelações tratam de muitos autores; e tenho a maior dificuldade em dizer o que se passa em […]. Ensaio sobre os mestres (1) … Claro, são objectos muito diferentes. Alguns surgiram mais ou menos como encomendas, outros correspondem a impulsos alimentados ao longo de anos (quase décadas), outros ainda resultam de compilações mais livres (mas, espero, nunca completamente injustificadas). Ora, nenhum modelo é preferencial. O que realmente importa é, em cada aposta, apostar até ao fim: jogar o jogo com exactidão. A monografia deve ser realmente monográfica, o dialogismo deve ser plenamente dialógico, etc. Acho que há uma grande beleza nesse gesto de propor um desafio, uma regra, e depois obedecer-lhe com extremo rigor. Digo isto muitas vezes: é como no xadrez – o que é belo no xadrez é que os jogadores, mesmo seguindo exactamente as mesmas regras, podem criar um estilo (esse angustiante mandamento herbertiano!). Ou seja, mesmo obedecendo a leis fixas e universais, podem conseguir uma linguagem própria: jogar como Paul Morphy, ou Mikhail Tal, ou Rameshbabu Praggnanandhaa… Estabelece (no seu percurso e em geral) alguma diferença entre «estudos» e «ensaios» – por exemplo, a partir de uma eventual maior conexão com projetos ou encomendas universitárias – ou a distinção parece-lhe artificial ou mesmo ociosa? Acho que não é uma distinção ociosa. Pelo contrário: talvez seja preciso distinguir profundamente esses dois conceitos, ainda mais distantes do que pode parecer à primeira vista. Para mim, o estudo é conhecimento, o ensaio é procura; o estudo define, o ensaio dilui; o estudo sistematiza, o ensaio desloca (estarei a ser demasiado taxativo? Conforme respondo, vou sentindo vontade de desafiar as minhas próprias frases, de voltar ao início, duvidar outra vez – mas resisto: adiante, adiante!). O estudo é um objecto (quantas vezes utilíssimo!), o ensaio é um acto inconcluso (cheio de temor e tremor…). Sai-se mais seguro de um estudo, mais incerto de um ensaio – pelo menos quando o ensaio é bom, quando trespassa o nosso conforto. Claro, seria preciso matizar tudo isto. E pensar que talvez não haja estudos nem ensaios em «estado puro», que talvez aquele objecto e aquele gesto se exijam mutuamente (talvez!), que um estudo pode dar origem a um ensaio (e vice-versa? não tenho a certeza); que um leitor capaz de ensaiar (passe o termo) transforma um estudo num pretexto para um ensaio, ou para vários, talvez contraditórios, talvez colocados em abismo. E também posso adiantar isto: só posso, e só quero, e talvez só saiba – escrever ensaios. Como autor, tenho alguns interditos; por exemplo: repetir-me. Detesto repetir-me, e fico muito desgostado quando percebo que estou a escrever um texto pela segunda vez (isto não tem nada a ver com regressar a certos autores ou certos livros; tem a ver com a necessidade de inventar sempre novas leituras para velhos textos; em suma, de me reinventar). Mas aqui está outro interdito, não menos severo: escrever um puro estudo, um repositório de certezas, de informações consensuais. Claro, muitas vezes é preciso começar por descrever um texto, um género, uma escola literária, um conceito – e as teses de vários autores sobre esse conceito, e as polémicas que, etc., etc. –, mas la vraie vie est ailleurs (Rimbaud/Godard), e essa coisa é que é linda (Pessoa). (Ah, sim, também seria bom falarmos de citações, do seu vício…) Ainda uma palavra sobre essa ideia de os bons ensaios trespassarem o nosso conforto. Um ensaio não é uma dose descartável de auto-ajuda; bem pelo contrário, o ensaio dificulta-nos a vida. Há anos e anos que sou perseguido por certas páginas de Kleist, ou Benjamin, ou Derrida; há parábolas de Kafka que me assombram desde sempre (não são exactamente ensaios, de acordo, mas o que seria «exactamente um ensaio»?). Esses textos por vezes revelam um sentido muito luminoso, mas apenas para logo depois se fecharem outra vez num intratável vazio. (O ensaio é um odradek, e um odradek é algo que me tira o sono.) O ensaio em si mesmo, a tradição ensaística, digamos assim, não parece constituir preocupação direta da sua reflexão, como se a prolongasse sem fazer dela um interesse específico. Considera justa esta observação? É mais importante aquilo de que o ensaio se ocupa (ou a que se aplica) do que aquilo que o distingue enquanto operação particular de escrita e pensamento? Hum… talvez não seja uma observação completamente certa. Muito de cor, lembro-me de escrever pelo menos ensaios sobre Eduardo Lourenço ou Luís Miguel Nava enquanto ensaístas. E também um texto de que continuo a gostar bastante, chamado «Como se escreve um ensaio», que aparece no fim do meu primeiro volume de Constelações. Ensaios comparatistas (2). Mas sobretudo acho que acabo por tratar de ensaísmo, directa ou indirectamente, em todos os livros que escrevo – mesmo quando, em vez de dizer «ensaio», digo «pensamento», ou «dúvida», ou «teoria», ou «especulação». Ou seja, acabo por falar tanto de ensaísmo – que nem sinto a tentação de escrever um livro especificamente sobre o conceito de ensaio (ou ainda: é como se estivesse a escrever esse livro sobre ensaísmo desde sempre, mas aos fragmentos, disseminando-o por todos os outros livros; como se esse livro estivesse nas entrelinhas das linhas dos outros livros; como se fosse um livro virtual, ou subliminar, ou latente; e não se trata de uma decisão consciente, de um programa: muitas vezes, os livros que se escrevem são livros que se nos impõem; Je est un autre, para voltar a citar Rimbaud, e é o outro, l’autre, que decide quais livros escreverá, quais livros não escreverá, quais livros disseminará nas entrelinhas, enquanto eu, je, muitas vezes sou, digamos, o último a saber). Quanto à outra pergunta («É mais importante aquilo de que o ensaio se ocupa (ou a que se aplica) do que aquilo que o distingue enquanto operação particular de escrita e pensamento?»), talvez possa responder assim: acho que o ensaio não se ocupa de um objecto, acho que o ensaio transfigura o objecto, e às vezes cria-o, e às vezes até o destrói; o ensaio não se aplica a um conhecimento anterior, ou então, se se aplica, deixa-o tão irreconhecível que no fim já só existe o mundo inventado pelo ensaio (sim, porque uma nova leitura do mundo não é apenas uma nova leitura do velho mundo, mas a criação de um novo mundo). Dito isto, o que me fascina no ensaio é, em primeiro lugar, essa «operação de escrita e pensamento». Não o conhecimento, mas aquilo que se faz com o conhecimento. E, claro, já se vai tornando difícil destrinçar o que o ensaio diz e o modo como o diz, o resultado do pensamento e a sedutora procura desse pensamento… Temos vindo a assistir, desde o início do século XXI, a uma atração transversal pelo ensaio, tornada evidente através de revistas híbridas, plataformas digitais, coleções de livros ou de textos que tomam o ensaio como forma privilegiada de escrita, exercícios gráficos e projetos editoriais como a Zazie Edições, por exemplo, que no contexto da lusofonia se dedica integralmente à tradução e disponibilização de ensaios em livre-acesso, etc. Como vê esta recente tendência de democratização do acesso a textos ensaísticos? A seu ver, esta tendência crescente poderá envolver a necessidade de uma ressignificação da própria ideia de ensaio atual e uma reinterpretação do ensaísmo como atitude intelectual e disposição de escrita? Bem, vejo tudo isso com o maior entusiasmo, claro! A Zazie Edições, ou a Chão da Feira, por exemplo, são verdadeiros tesouros. De resto, fico encantado quando posso descarregar on line livros inteiros disponibilizados pela Fundação Calouste Gulbenkian. As revistas científicas têm-se convertido todas à publicação digital, e muitas vezes de acesso livre. A este nível, acho que estamos a viver tempos maravilhosos – sem sequer sairmos de casa, conseguimos aceder a oceanos de textos; ainda por cima, muitas vezes, a textos excelentes. E parece-me óbvio que o ritmo só se pode intensificar muitíssimo: como não ficar exultante? Mas também há isto: aceder aos textos é apenas uma parte da nossa tarefa. Não importa simplesmente coleccionar arquivos (algures, Žižek diz que guardamos esses textos na memória do computador como se o computador pudesse lê-los por nós – como se o computador gozasse por nós o gozo dessa leitura, que assim deixaria de pesar sobre os nossos ombros), é preciso interpretá-los, debatê-los, questioná-los a fundo, quero dizer, reinventá-los. Ora, esse trabalho de decifração e diálogo pode facilmente falhar, e não sei se resulta no domínio da internet, que é tantas vezes disperso e dispersivo. Não tenho qualquer solução para isto. Como professor, espero que as minhas aulas ensinem essa leitura lenta e atenta (e tensa) dos textos: acho que também se pode ensinar essa lentidão paciente e recompensadora, uma certa lição de suspeita – ler os textos como um detective à procura de pistas do crime (um detective que, ao pesquisar, fosse semeando novos crimes…). No fundo, espero que a aula também seja um ensaio. E talvez a própria vida. E, claro, também esta entrevista. Considera que a dimensão literária do ensaio (seu exercício e sua valorização) poderá ter um papel importante a cumprir na Universidade contemporânea? Importa dar voz e fortalecer a reflexão que se produz fora dos formatos acadêmicos em vigor, hoje em dia muito influenciados, em Portugal, por exemplo, pela FCT? Sim, acredito numa «dimensão literária do ensaio»; e sim, acredito profundamente no seu papel dentro das universidades contemporâneas. Mas também penso que as universidades – mesmo na área das Humanidades – podem e devem propor outros modelos (o facto de eu optar pelo ensaio como a minha linguagem não significa que outros autores, professores, pesquisadores não possam explorar outros caminhos, é evidente); do mesmo modo, penso que os ensaios podem (e devem) existir, circular, debater-se também fora das universidades. Em suma: tenho a maior dificuldade em pensar exclusivismos, correspondências lineares, arrumações – prefiro pensar movimentos, contágios, improvisos. Dito isto, o problema nunca estaria no «género» do ensaio, nem nos «formatos académicos em vigor», mas sobretudo na uniformização que defendesse apenas um modo de pensar-criar (ou de pensar-conhecer, ou de pensar-sistematizar…). Acho muito valioso que as universidades possam multiplicar as suas abordagens, desenvolver pesquisas, escritas, interrogações a partir de «jogos de linguagem» (Wittgenstein) diferentes. Além disso, o problema nunca seria o ensaio em si, mas apenas o ensaio fraco, falacioso, mecânico, previsível; o problema também nunca seria o formato académico, mas apenas o texto académico preguiçoso, falso, estéril. Mais uma vez, acho que é preciso criar as regras do jogo e, depois, jogá-la até ao fim. -- (1) (Apesar de tudo, posso tentar explicar um pouco por que razão «tenho a maior dificuldade em dizer o que se passa em […]. Ensaio sobre os mestres». Trata-se de um livro de 500 páginas, composto apenas por citações. Tudo o que surge nessas páginas vem de outros livros, jornais, revistas – excepto a bibliografia final, que é feita por mim, e o próprio título, aliás bastante ilegível, […]. Mesmo no subtítulo, «ensaio sobre» é uma citação de Silvina Rodrigues Lopes, e «os mestres» uma citação de George Steiner. Salvaguardadas as devidíssimas proporções, trata-se de um projecto afim do Livro das Passagens de Walter Benjamin, ou pelo menos do Livro das Passagens tal como Theodor Adorno parece ter imaginado que seria... Ao mesmo tempo, claro está, […] é escrito por mim: é meu o trabalho de recorte, montagem, a composição rítmica, uma escrita que se faz graficamente no espaço da página. Desse trabalho de montagem depende o sentido deste ensaio: a sua narrativa, as suas teses, as suas antíteses e sínteses, ironias e elipses e suspensões, tudo é escrito por mim, mediante colagens. Se tenho então tanta dificuldade em falar deste livro (e não apenas dificuldade, também pudor e susto e até remorso), é por uma razão muitíssimo simples: eu apenas poderia falar desta montagem de citações através de novas citações, costuradas num novo fluxo. A menor palavra minha sobre este texto trai este texto radicalmente – e por isso evito sempre falar sobre ele, escrever sobre ele. Mesmo estes comentários são, portanto, terrivelmente excessivos. Por isso, e com muitos remorsos – lá está! –, fechemos depressa este parêntese.) (2) Não resisto a incluir aqui esse texto: Como se escreve um ensaio 1. Se quiseres abrir um poço, desenha uma pequena, estreita abertura. Quanto mais larga ela for, menos profundo o poço. Porque não tens, para abrir um poço, todo o tempo do mundo. 1.1 Não terás tempo para ler todos os livros. Mas os livros que te interessa ler, escolhe-os, e lê-os muito devagar. 1.11 Há duas angústias. Uma paralisa-te, a outra inspira-te movimento. Cria uma boa angústia, inspiradora. 1.2 Podes subir ao topo de uma montanha, e dizer: cheguei, estou no topo da montanha, esgotei a montanha. Mas não consegues chegar ao fundo de um poema e dizer: cheguei, atingi o fundo, esgotei o poema. 1.21 Inventa metas estritamente humanas. 1.22 Não inventes metas estritamente humanas. 2. Existe um tempo para desejar quase tudo e um tempo para ficar com quase nada. 3. Lê o que está no texto. Aponta, com o teu dedo, de cada vez: aqui. 3.1 Podes defender tudo, mesmo o inverosímil. Quanto mais inverosímil, mais terás de ser claro na tua defesa. Galileu e os seus discípulos, em Brecht: demonstrar que mesmo Aristóteles estava errado. 3.2 A verdade dura apenas um instante. 3.21 Mas que seja um instante supremo. 3.22 E cada escrita é apenas o anúncio de outras escritas, sempre futuras. O ensaio vem do futuro, mas nunca o apresenta. Apenas testemunha que esse futuro existe, e te exige. 4. É o poema que pede o teu ensaio. Quando escreveres sobre o poema, ouve o pedido do poema. 4.01 Um ensaio é uma forma de audição. 4.02 Não forces o poema a vir ao teu ensaio, mas deixa que o poema invente o teu ensaio. 4.1 A maior parte da tua leitura é intuitiva, não a provocas nem dominas. Mas podes deixar o teu corpo disponível para intuir. Esquece o corpo de tal maneira que ele seja facilmente despertado pelo atrito do poema. Prepara o imprevisível. 4.2 O pequeno esforço da espontaneidade. 4.21 Rosalyn Tureck: «Faço o que Bach me manda fazer.» 4.22 O ensaio serve-se do ensaísta para existir. 5. Escrever sobre literatura é ser especialista em todas as coisas. 5.1 E tudo se desconstrói. 5.11 Perigo extremo da desconstrução de tudo: Hofmannsthal, Carta de Lord Chandos. 5.12 Ameaça real, inevitável, insanável, da aporia. Tens de saber viver com isso. E ser honesto: reconhecê-la, quando acontece. 5.121 Mesmo Lord Chandos, para dizer que é incapaz de escrever, escreve uma carta. 5.122 «Transmissão do conhecimento científico»? A minha ignorância, isso sim, posso transmitir. 5.13 Quando se contempla muito tempo o olhar de medusa de um conceito, ele torna-se intratável. Ninguém sabe quando deve deixar de fixar um conceito e simplesmente usá-lo. 6. O ensaio é perigoso, o ensaio é o perigo. Escreve um ensaio para entrares em perigo. Escolhe o teu perigo, à tua desmedida. 6.1 O ensaio transfigura o ensaísta. Escrever o ensaio não é aplicar tecnicamente um instrumento hermenêutico a um objecto vítima de corte epistemológico. Mas escrever o ensaio mina a técnica, a hermenêutica e a epistemologia. 6.11 O ensaio não é a exposição de um saber dominado, mas o des-domínio de quem procura e encontra o que não sabia. 6.111 Mas o ensaio é também esse encontro. 6.112 A estrutura da frase é o teu pensamento. Não existe primeiro a ideia, e depois a tua frase para explicar a ideia. A própria frase é figuras, dobras, acontecimentos. Por isso, não é possível reduzir a frase a uma ideia etérea, mas cada frase é atrito irredutível. 6.12 Escreve o ensaio se necessitas dele. Se precisas de resolver uma questão. Se uma angústia te persegue, e o ensaio, mesmo que doloroso, permite responder a essa angústia. 6.121 Escreve um ensaio que complique a tua vida. 6.122 O ensaio é uma questão de vida ou de morte. 6.2 Talvez possas sobreviver ao ensaio. Talvez não possas. Decerto não podes. Se sobrevives, sobrevives outro. O ensaio transfigura o ensaísta. 6.21 Escreves para não saber quem és. 6.22 Desconhece-te a ti mesmo. 7. Sobre aquilo de que não se pode falar, (in Constelações. Ensaios comparatistas, Porto, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa / Afrontamento, 2013: 241-244) * Da parte do autor, esta entrevista insere-se no âmbito da investigação desenvolvida no Instituto de Literatura Comparada, Unidade I&D financiada por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e para a Tecnologia (UIDB/00500/2020). * *Entrevista realizada por Rita Basílio, Gustavo Rubim e Jessica Di Chiara. |
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